1º Congresso STJ Brasil-Japão de Direito discute desafios das mudanças climáticas e da inteligência artificial
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) promoveu, nesta quinta-feira (14), o 1º Congresso STJ Brasil-Japão de Direito, com o tema “Direitos humanos: desafios jurídicos das mudanças climáticas e da inteligência artificial”. O evento foi realizado no Salão Nobre do tribunal e teve transmissão ao vivo pelo YouTube.
Os painéis reuniram juristas brasileiros e japoneses em diálogos destinados ao aprofundamento de temas como os impactos das mudanças climáticas no planeta e os efeitos dos avanços da inteligência artificial (IA) sobre os direitos humanos, além de discutir o papel do Poder Judiciário diante desses desafios.

Na abertura do congresso, pela manhã, o presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, ressaltou que Brasil e Japão compartilham muitos laços históricos, assim como um compromisso profundo com os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana, as liberdades, a diversidade e, sobretudo, o respeito aos juízes.
“Essa é a maior afinidade entre nossos dois países: somos porta-vozes e exemplos vivos do Estado de Direito, e isso nos aproxima enormemente, seja no campo do direito penal, do direito público ou do direito privado. Neste primeiro congresso, estamos reunidos para celebrar não apenas a imigração japonesa, mas, acima de tudo, o que temos de melhor: o Estado de Direito”, afirmou o ministro.
Acesso à Justiça no Brasil deve ser entendido como acesso à ordem jurídica justa
Em sua fala, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), abriu uma mesa de debates, destacando que o Brasil possui um sistema jurídico de tradição romano-germânica, predominantemente legislado, mas que recentemente incorporou precedentes vinculantes inspirados no common law. Segundo ele, essa mudança aumenta a segurança jurídica, a eficiência e a isonomia no Judiciário.
Sobre direitos humanos, Barroso explicou que, no Brasil, eles se manifestam como direitos fundamentais, que independem da vontade da maioria e garantem dignidade, liberdade, igualdade e proteção mínima existencial. Classificam-se como direitos individuais, políticos, sociais e difusos, sendo que estes últimos, transindividuais e indivisíveis, incluem, entre outros, os direitos do consumidor e a proteção ao meio ambiente e ao patrimônio cultural.
O ministro também abordou mudanças climáticas e inteligência artificial, alertando que a crise ambiental já impacta direitos fundamentais e exige ação global e judicial diante da inércia política e do negacionismo. Sobre a IA, realçou seu potencial transformador na medicina, no direito e na comunicação, mas chamou atenção para riscos éticos, sociais e de segurança, defendendo regulamentação urgente para acompanhar a velocidade de sua evolução. “É preciso que a inteligência artificial seja regulada adequadamente para permanecer numa trilha ética”, sentenciou.
Cooperação jurídica é elemento-chave para fortalecer relacionamento bilateral
Segundo o embaixador do Brasil no Japão, Octávio Henrique Côrtes, declarou que o congresso representa uma oportunidade concreta de ampliar a cooperação entre os dois países, especialmente no campo jurídico. Apontou que, “apesar de localizados em polos opostos do globo, nossos países têm uma relação de grande proximidade e uma ambição permanente de estreitar laços” – sustentada por vínculos humanos históricos e significativos, segundo ele.
O embaixador lembrou que o Brasil abriga a maior comunidade nipodescendente fora do Japão, enquanto este é o lar da quinta maior comunidade brasileira no exterior. No campo jurídico, citou os professores Masato Ninomiya e Kazuo Watanabe como exemplos de pessoas que, há décadas, constroem pontes sólidas entre ambos os países. “Tenho certeza de que o congresso de hoje não apenas debaterá temas candentes do universo jurídico, mas também criará novos laços que gerarão iniciativas de diálogo e cooperação no futuro”, reforçou.
A embaixadora Susan Kleebank, chefe da Secretaria de Ásia e Pacífico do Itamaraty, comentou que a cooperação jurídica é elemento-chave para fortalecer o relacionamento bilateral, e que o evento cria um espaço valioso para troca de experiências, harmonização de perspectivas e avanço em convergências normativas.

Kleebank destacou que, no cenário global, os direitos humanos diante das mudanças climáticas e o avanço da inteligência artificial constituem temas de impacto crescente, demandando o aperfeiçoamento dos marcos normativos e uma cooperação internacional mais estreita. Ressaltou que, enquanto as mudanças climáticas desafiam simultaneamente ciência, política e direito, a inteligência artificial, embora não substitua o magistrado, pode ampliar sua capacidade de atuação, conferindo-lhe mais eficiência, sem renúncia ao que é insubstituível: interpretar a lei com sensibilidade e assegurar que a inovação sirva à justiça.
Nessa mesma linha, Tomoaki Ishigaki, embaixador em exercício do Japão no Brasil, confirmou que a colaboração se tornou essencial para o avanço de objetivos comuns. Segundo ele, os temas debatidos no congresso são cruciais não apenas para o Japão e o Brasil, mas para todo o mundo. O diplomata considerou fundamental refletir sobre como proteger os direitos individuais e coletivos, especialmente de grupos minoritários, diante dessas transformações. “Estou confiante de que este será o primeiro de muitos encontros frutíferos, que fortalecerão nossos valores compartilhados e nosso compromisso com a justiça e o Estado de Direito”, concluiu.

Brasil abriga cerca de dois milhões de descendentes de japoneses
O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Caio Marinho, afirmou que vivemos um momento de desafios sem precedentes. “Dias como hoje são fundamentais para debater e trocar experiências, considerando nossas culturas e os 130 anos de relações diplomáticas entre Brasil e Japão. Ainda existem lacunas no conhecimento efetivo entre nossos sistemas jurídicos, e encontros como este nos permitem reduzir essas distâncias”, explicou.
Em seu discurso, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Frederico Mendes Júnior, relembrou a trajetória de seu avô, que desembarcou no Brasil na década de 1920 com o sonho de retornar ao Japão, mas acabou fincando raízes no país. Contou que, com muito trabalho, dedicou-se a oferecer aos filhos e netos a oportunidade de estudar – história que reflete a experiência de muitos imigrantes japoneses, que contribuíram de forma marcante para a construção da sociedade e da cultura brasileiras.
O magistrado também destacou que, atualmente, o Brasil abriga cerca de dois milhões de descendentes de japoneses, celebrando a representatividade dessa comunidade no Judiciário. Como exemplos da liderança dos magistrados nipo-brasileiros, citou o desembargador federal Carlos Muta, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), e a desembargadora Lídia Maejima, presidente do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR).
Conceito ampliado de acesso à Justiça
O professor Kazuo Watanabe, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), destacou que o acesso à Justiça no Brasil deve ser entendido como acesso à ordem jurídica justa, e não apenas como adjudicação tradicional pelo Judiciário. Segundo ele, esse conceito ampliado abrange todos os mecanismos de pacificação de conflitos, especialmente os consensuais – como conciliação e mediação –, permitindo que as próprias partes busquem soluções adequadas, com ou sem a intervenção de terceiros.
Watanabe também ressaltou a importância de informar e orientar os cidadãos sobre seus direitos, considerando os elevados índices de analfabetismo absoluto e funcional no país. “Sem essas informações e orientações, as pessoas sequer saberão se são titulares de algum direito ou se estão sendo vítimas de alguma violação”, avaliou, reforçando que o conhecimento jurídico é essencial para o pleno exercício da cidadania.

O professor Shinichi Kitaoka, assessor especial do presidente da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica) e professor emérito da Universidade de Tóquio, falou sobre a importância de fortalecer o Estado de Direito e empoderar as pessoas, promovendo direitos humanos, proteção econômica e ambiental, por meio de iniciativas concretas de cooperação internacional.
Ele ainda apontou a responsabilidade conjunta de Japão e Brasil na reforma do Conselho de Segurança da ONU e o compromisso com o direito internacional, evidenciado por ações recentes de cooperação judicial e policial internacional. “Temos muitas áreas em comum nas quais cooperar, e é essencial acelerar e expandir essa colaboração. Esta ocasião é, sem dúvida, uma oportunidade importante para discutirmos e avançarmos na cooperação entre Brasil e Japão em prol do fortalecimento do direito e da justiça internacional”, concluiu.
Repensar vínculos com a natureza e compreender o impacto das mudanças climáticas
O primeiro painel do congresso, intitulado “Mudanças Climáticas, Meio Ambiente e Direitos Humanos”, foi presidido pela ministra Nancy Andrighi. Ela ressaltou que o meio ambiente é um dos temas mais urgentes da atualidade e que a colaboração dos participantes será fundamental para pensar e agir em sua defesa. “O homem é a única espécie do planeta que gera matéria residual que a natureza não consegue ressignificar nem reintegrar na Samsara da criação divina”, declarou a ministra.
Já professor Hajime Akiyama, do Instituto de Humanidades e Ciências Sociais da Universidade de Tsukuba, abordou a relação entre mudanças climáticas, meio ambiente, migração e direitos humanos. Ele discorreu sobre os novos desafios que surgem nesse campo, como a necessidade de repensar o vínculo do ser humano com a natureza e compreender o impacto das mudanças climáticas sobre os direitos fundamentais, já que certos problemas ambientais podem ameaçar a própria sobrevivência humana. Ao concluir sua apresentação, propôs duas reflexões: “A natureza pode ser protegida reconhecendo seus direitos?” e “Como podemos reconceituar a proteção aos direitos humanos?”.
Tomohiko Kobayashi, professor do Departamento de Direito da Universidade de Comércio de Otaru, tratou do desenvolvimento sustentável e dos direitos dos povos indígenas. Para ele, o Brasil é referência mundial nessa área, embora esses direitos, muitas vezes, sejam esquecidos ou negligenciados. Kobayashi lembrou que existem diversos tratados multilaterais, com resultados variados, mas enfatizou que “o que precisamos é de mais engajamento, com a participação proativa dos povos indígenas, não apenas como beneficiários passivos, mas como atores participantes do processo”.
Alinhamento entre direitos humanos e clima impulsionou avanços nos litígios climáticos
A professora Aurea Christine Tanaka, doutora pela USP e pós-doutora pela Universidade de Tóquio, apresentou um relatório sobre a doença de Minamata no Japão e no Brasil. Explicou as consequências da contaminação por mercúrio em animais, na natureza e nos seres humanos, destacando que, no Brasil, a maior parte da contaminação ocorre em áreas de reserva indígena próximas a regiões de extração de ouro. “É preciso olhar as comunidades locais como parte dessa justiça global, dessa justiça climática que precisamos praticar hoje, diante de todos os desafios existentes”, defendeu.
O professor Noriko Okubo, da Faculdade de Direito da Universidade de Osaka, analisou a evolução histórica dos direitos relacionados ao meio ambiente no Japão. Explicou que, no país, tais direitos são reconhecidos como direitos humanos, considerando dois elementos principais: o direito à integridade física e o direito à integridade mental. Ressaltou os desafios japoneses para efetivá-los, como a necessidade de fortalecer a abordagem da biodiversidade e aprimorar os mecanismos processuais, especialmente o acesso à Justiça ambiental. “Podemos aprender muito com o Brasil, e este congresso é uma excelente oportunidade para isso”, afirmou.
Encerrando o painel, a professora Ana Maria de Oliveira Nusdeo, da Faculdade de Direito da USP, tratou do dever dos Estados de implementar políticas climáticas. Ela citou obrigações previstas no ordenamento jurídico brasileiro, como o direito fundamental ao meio ambiente na Constituição Federal, a proteção dos direitos humanos em tratados internacionais e a defesa dos biomas nacionais, enfatizando a importância de instrumentos como a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Segundo a professora, “é muito importante esse alinhamento entre a proteção dos direitos humanos e a proteção do clima, porque ele permitiu um grande desenvolvimento no processo de litígios climáticos”.
O simpósio teve continuidade no período da tarde, com mais dois painéis: “Governança da Inteligência Artificial”, que foi presidido pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, e “O Uso da Inteligência Artificial por Agentes Judiciais”, conduzido pela presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, desembargadora Lidia Maejima, e pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, desembargador federal Carlos Muta.
O encerramento do congresso ficou a cargo do corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques. Ele fez um resumo completo dos principais pontos abordados no evento e teceu considerações sobre a importância jurídica da cooperação entre Brasil e Japão. Clique neste link para conferir a fala do ministro e neste para ler as considerações.
A íntegra do evento está disponível no canal do STJ no YouTube.