A imparcialidade na investigação criminal

A Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, apodada Constituição Cidadã pelo eminente deputado constituinte Ulysses Guimarães, estabeleceu republicanamente as funções do Ministério Público e dos delegados de polícia, não dando azo a elucubrações alienígenas, a exemplo da teoria dos poderes implícitos insustentável no ordenamento jurídico pátrio numa concepção racionalista socrática.

A imparcialidade na investigação criminal 1Primando pela garantia do estado democrático de direito, a tônica investigação criminal conduzida pelo Ministério Público, torna a ser examinada pelo STF em três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 2.943, 3.309 e 3.318), da relatoria do ministro Edson Fachin, exercendo o seu papel de guardião da Constituição e dos direitos e garantias fundamentais.

Remansosamente é atribuição do Ministério Público fiscalizar as polícias

externamente, garantir a ordem jurídica, regime democrático, interesses sociais e indisponíveis, presidir inquérito civil entre outras funções análogas, conforme se extrai do cristalino texto constitucional em seu artigo 129, ipsis litteris:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

§ 1º. A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.

§ 2º. As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição.

§ 3º. O ingresso na carreira do Ministério Público far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.

§ 4º. Aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93.

§ 5º. A distribuição de processos no Ministério Público será imediata”. (destaques nosso)

Noutro vértice, insofismavelmente, o dispositivo constitucional é claro, depreendendo que os agentes ministeriais não tem vocação técnico-jurídica para realizar investigação criminal, porquanto esta deve ser conduzida pelos órgãos legitimados pelo constituinte, que no âmbito estadual é a Polícia Civil, fitando esquadrinhar as circunstâncias e motivação de infrações penais imbricando-as à materialidade e à consentânea autoria, respeitando-se a legislação ordinária e as normas constitucionais vigentes, v.g., Lei nº 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia e artigo 144, inciso IV, § 4º, do Estatuto Jurídico Constitucional, in verbis:

“Art. 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

§ 1º. Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

§ 2º. Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos [“….”]”.

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

IV – polícias civis;

§ 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. (destaque nosso)

Outrossim, o Colendo Supremo Tribunal Federal, agindo de ofício e em

consonância com a norma constitucional, acachapou a ingerência de outros

órgãos nas atribuições das Polícias Judiciárias e resguardando os interesses dos defensores ao regulamentar o assunto por meio da Súmula Vinculante nº 14, in litteris:

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam

respeito ao exercício do direito de defesa”. (destaque nosso)

Imperioso destacar, que o sucateamento da polícia judiciária paulista, não justifica a substituição de suas funções pelo Parquet, atentando-se ao devido processo legislativo, processo penal democrático e à inobservância da paridade de armas entre a acusação e à defesa, fomentando a mafaldada insegurança jurídica (CF, artigo 5º, inciso XXXVI) e a “falácia garantista” sustentada por Luigi Ferrajoli, in verbis:

“‘Art. 5º [“…”]:

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada'”. (destaque nosso).

Em tese, admite-se que as partes, defesa e órgão acusatório, demandem e

participem de investigações criminais em curso, conforme plasmado pelos artigos 5º, inciso II, e, 14 do CPP, artigo 7º da Lei nº 8.906/94 — Estatuto da OAB e o pacífico entendimento jurisprudencial esposado na Súmula 234 do Superior Tribunal de Justiça, dispondo que a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.

Nesse compasso, os promotores de justiça têm garantido constitucionalmente a relevante função de promoverem ações penais embasados em investigações criminais presididas pelas autoridades policiais competentes, eventualmente, poderão valer-se de peças informativas amealhadas em apurações administrativas e em processos extrapenais, após valorada a justa causa, materialidade e a autoria, conforme se extrai da leitura do parágrafo único do artigo 4º e artigo 40, ambos do Código Processual Penal, ipsis verbis:

“Art. 4º. [“…”]:

Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.

“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”. (destaque nosso)

Inconcebível o argumento falacioso de que qualquer entidade poderá investigar com fundamento no referido parágrafo único do artigo 4º do Diploma Adjetivo Penal descrito no Título II alusivo ao Inquérito Policial.

Paradoxalmente, é inadmissível dar idêntico tratamento a situações díspares, como se apuração de falta administrativa assemelhasse à investigação conduzida em procedimento específico administrativo criminal regulamentado por lei ordinária.

No concernente à seara administrativa é sabido possuir um vasto campo de

atuação na administração pública (TCU, Corregedorias, INSS, Detran, Procon etc.) e nas empresas privadas através do sistema compliance. Quiçá,

tal desfecho poderá ensejar uma ação penal ou ainda uma apuração penal em sede de inquérito policial.

Assim, a amplitude de agentes para apurar uma falta administrativa não deve ser confundida com o âmbito restrito da investigação criminal que deve seguir rígidos princípios tanto da legalidade administrativa (CF, artigo 37, caput, incisos I e II) quanto da legalidade penal — reserva legal e irretroatividade da lei penal —, aplicáveis ao instituto jurídico do inquérito policial, imbuído de normas penais mistas ou híbridas com reflexos sobre direitos de liberdade e dignidade de investigados apontados como possíveis autores de delitos (CF, artigo 5º, inciso XXXIX), cuja incumbência foi chancelada expressamente na Constituição às polícias judiciárias como decorrência de um estado republicano e democrático de direito reverberado na Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, in verbis:

“Art. 5º [“…”]:

‘XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal'”.

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos

princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. (destaque nosso)

Nesse raciocínio, depreende-se que o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução 181/2017, atualizada pela Resolução 183/2018, com a finalidade de regulamentar o Procedimento Investigatório Criminal realizado pelo referido órgão, cuja normatização entendemos estar eivada como se fosse um fruto envenenado na árvore constitucional, assim maculando o devido processo legislativo e o estado democrático de direito, desviando suas funções constitucionais de fiscalização da ordem jurídica e eficiência das polícias investigativas.

Não parece crível investigar um cidadão por meio de um ato administrativo

acoimado de inconstitucionalidade e, na verdade, fruto de ingerência, de gestão imperfeita, invadindo competência legislativa da União, conforme verifica-se no texto constitucional abaixo, in litteris:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário,

marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. (destaque

nosso)

Deste modo, as polícias judiciárias versadas em apurarem infrações penais são órgãos essenciais às funções jurisdicionais do Estado, competindo-lhes por meio do instrumental inquérito policial harmonizado ao estado democrático de direito deflagrar o jus persecutio estatal, promovendo a defesa dos direitos humanos, garantindo os direitos de vítimas e investigados, sob o viés dos princípios da legalidade, impessoalidade e do interesse social, resguardando uma justiça menos aleatória, mais prudente, serena e a auspiciosa segurança jurídica.

Em arremate, sempre com o devido respeito, nos termos do artigo 102 da

Constituição Republicana de 1988, cumprirá aos ministros do STF a missão democrática de salvaguarda das legítimas funções institucionais dos órgãos da Polícia Judiciária e do Ministério Público, assegurando o Estado republicano e democrático de Direito.


FONTE: CONJUR

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